6.9.06

Mindelo há cinco anos - II

Transcrevo outro texto de "Clara Vales" porque penso que é um tema actual. O meu único reparo vai para o tamanho da crónica. Se fosse hoje diria tudo com metade das palavras.

Nem capitães nem segurança

Há dias, dois meninos da “praia d’bote” surripiaram-me o porta moedas. Nada de mais a acrescentar, apenas mais um que foi à vida. O problema, propriamente dito, não está no roubo, o busílis da questão esta no facto de, os piratinhas terem sabido como agir. Enquanto um me distraía, esmolando para um pão, o outro subtraia-me a carteira. Pois é, temos bando, temos organização e temos esquema!
Uma senhora que, no local, presenciou a minha estupefacção, confidenciou-me que os dois fazem parte de um grupo conhecido, cerca de dez, que ciclicamente, percorrem a Rua da Praia, fazendo pequenos furtos, desaparecendo estrategicamente até ao dia seguinte. Informou-me que são conhecidos da Policia e aconselhou-me a pedir-lhes auxílio.
Esperançosa, dirigi-me ao Comando, onde fui prontamente ouvida com todo o profissionalismo. Os polícias presentes, estiveram atentos até ao momento em que perceberam que a minha “estória” era apenas mais uma a acrescentar a tantas outras, se calhar, ouvidas quotidianamente. Pacientemente, fui convidada, por um dos agentes, a ver uma série de fotografias a preto e branco, guardadas cuidadosamente, dentro de uma pequena caixa de papelão, e proceder à identificação do par.
Examinei cerca de cinquenta fotos, divididas, basicamente, em três idades. A dos adolescentes, com olhar revoltado e queixo tenso, a dos “aborrecentes”, fazendo cara de não me importa e a dos mais pequenos, em poses ingénuas e semblante malandro. Reconheci imediatamente quatro ou cinco rapazes, do bando que ronda as imediações de um supermercado que frequento e onde, na maior parte das vezes, pedem uma moeda a troco de nada. Quase todas as fotografias estavam manuscritas no verso com um ou dois nomes, apelidos de pai e mãe e os respectivos nominhas, como “Springuintin” ou “Coxim”.
No meio dessas fotos, mais parecendo pertencer a uma caixa de uma década anterior, havia uma “carinha” muito particular. A fotografia, bastante amarelada, exibia um homem que fixava a câmara passivamente e cujo penteado “black” aliado a um sulco que lhe dividia copiosamente a melena, quase me fez sorrir. No verso lia-se “Rob d’ Jula” a duas letras e tintas distintas. Alguma mão mais ciosa corrigira após a primeira identificação, o nome mal escrito, pois que um A despudorado cobria o IA feito pelo primeiro punho e dois EE tinham sido mascarados por uma borracha de tinta. Nada de enganos, Rob d’ Jula e não Robe de Júlia! O que faria essa figura “lendária” no meio das outras? Deduzi que talvez, alguém menos atento, no momento de a guardar novamente, após alguma identificação apressada, se tivesse enganado na caixa. Não acredito que tenha pensado que bandidos são bandidos, e piratinhas serão ladrões, pelo que o melhor é estarem bem acompanhados e terem no meio deles uma figura mais paterna, mesmo que, isso signifique acabar por confundi-los a todos e aos seus crimes, pois quem de pequeno, faz furto, quando crescer, cometerá roubos, arrombamentos, desvios e violações, que isto de crimes é sempre a subir.
Acabei por identificar apenas um dos rapazes, mas ainda assim com pouca certeza, afinal, não me tinha dado ao trabalho de fixar os traços do meu “pedinte”. Segui o conselho do agente, fui-me embora, ficando de regressar no fim do expediente para saber como estava o andamento do caso.
De regresso à minha rotina habitual, se sem saber como, veio-me à mente o livro “Capitães de Areia”. As hipóteses de recuperar o porta moedas eram quase nulas e deve ter sido essa a forma que o meu inconsciente encontrou para, tranquilamente, pôr uma pedra sobre o assunto, e fugir às implicações reais do acontecido.
Mas confesso… não Há Jorge Amado ou actos vistos à luz de um prisma mais poético que mascare o atordoamento que ainda sinto quando recordo o meu regresso ao Comando da POP.
Devido ao adiantado da hora, foi na rua que falei com o agente à paisana encarregue do meu caso. O policia, ao volante do carro das diligências e, ao mesmo tempo que ia fazendo mil e um malabarismos para estacionar, mesmo colado à parede lateral do comando, com o fito de barrar o acesso de uma das portas da viatura com o vidro escangalhado, informava-me que não, não havia novidades, que regressasse amanhã porque eles, quando roubavam, subiam a Ribeira Bote de onde não desciam até terem comido, bebido e fumado todo o dinheiro. Eu, sem nenhuma esperança no que toca a porta moedas mas, ainda assim, admirada com tanta perícia, perguntei o porquê de tantas manobras, se ele não era policia, se não estávamos nas imediações do Comando da ilha, ao que o agente respondeu a meio tom… “mais ou menos”.
Se a policia que é Policia, tem de defender o património com que trabalha, neste caso, um carro sovado e maltratado, como nos pode defender a nós, cidadãos que procuramos e esperamos protecção em situações idênticas?
Quem responde por esses menores que, pela lei, não podem ser responsabilizados pelos actos que cometem? Se eles têm nomes e apelidos, foram registados, têm pai e mãe. Os pais ou encarregados de educação que sejam responsabilizados. É fácil cair no erro de os transformar em Capitães da Praia de Bote, mas o que é certo é que eles vão crescer.
Quanto a mim, tenho-me esforçado, mas até agora, não me vem à memória nenhum livro de Jorge Amado ou outro autor, que me faça pôr uma pedra sobre o assunto e dormir tranquila com a visão romântica de bandos de Rob d’ Jula a pulular estas ilhas.
Clara Vales
Outubro de 2001

Pois é… eles cresceram e já não há poesia ou desprendimento que aguente tanta afronta!