31.5.06

Limando arestas

Hoje passei o dia a limar algumas arestas do blog. Refiz os primeiros posts e estive às voltas com a apresentação. As alterações são poucas à primeira vista e ainda assim não está bem o que eu quero. Com o tempo acredito que chegarei lá. Acho que já é possível ler os “Os Almeidas de Praia Branca” (post do dia 11 de Maio) e entender quem é quem. Houve alguns amigos e familiares que se perderam no meio de tantos nomes, “nominhas” e gerações… tive que identificar mais claramente os personagens. Proximamente “postarei” a árvore genealógica dos “Almeida”. Fico por aqui...

29.5.06

"O Primo Constant" e outras recordações da Guiné

"O primo Constant morreu com os pés de fora da cama, de tão grande que foi. Vomitou, em soluços negros, o fígado liquefeito de alguma maleita misteriosa que ninguém da família soube pôr o nome mas que o jovem médico da tropa portuguesa chamou solenemente, ao fim de uma pequena indagação à sua vida passada, de “resquícios da acção do quinino num fígado combalido pelo consumo exacerbado de álcool”. Mas, para o avô Lindorff, o primo querido não poderia ter morrido do “diagnóstico disparatento desse doutorzinho de merda” e acabou que oficialmente e para os anais da família a razão do seu falecimento se deveu a mandioca crua que tinha ingerido horas antes de começar a bolsar uma gosma negra, qual criança acabada de mamar. Quando depois de meia hora e quatro águas gaseificadas percebeu que o refluxo apenas piorava, meteu-se na station e descondongou de Bafatá até Bissau, onde chegou ao anoitecer, com cor de sobra de baguitch bem pangado, pronto para se acabar de desfazer em suor e postas de sangue coagulado, tão perfeitinhas, que mais parecia que paria sanguessugas pela boca. Acabou-se no catre do Hospital Central, tão fino e mirrado que somente os pés desalmados fora da cama, testemunharam o que era seu a seu dono.
Em mil novecentos e setenta e oito, quando a avó Luzia me contou a “estoria” da morte pela mandioca, na cozinha da casa de Bissau, tentando evitar que eu abarbatasse bocadinhos do tubérculo assassino, com a lucidez dos meus sete anos, perguntei-lhe como podia ele, que comeu coisa branca, morrer vomitando coisa preta. Ela acabou por concluir em voz alta, reflectindo se calhar pela primeira vez no assunto, que o fígado do primo depois de viver anos alagado em bebida, ressecara como uma pedra que estala ao sol quente do meio-dia, iniciando daí uma viagem ao mundo exterior, para ver se cá fora, ainda se poderia afogar em vinho de palma. E a mandioca, perguntei de boca cheia, e a mandioca… e a mandioca… respondeu, e sem concluir a frase, enxotou-me para o quintal, onde ainda levei a boca, um último pedaço criminoso.
Mas agora, escrevendo sobre o assunto, ocorre-me que o vinho palma também é branco, enfim, loucuras da minha gente!"
Escrevi este texto em Março de 2004 e somente há tempos tive oportunidade de o dar a conhecer á minha avó Luzia que não perdoou o facto de eu não me ter esquecido da cena da cozinha... Se ela soubesse como as recordações que tenho da minha infância na Guiné me são queridas… Ainda me lembro da sensação de adormecer na carpete da nossa incrível sala de visitas, pintada a quatro cores, onde imperava a enorme estante de mogno cheia de readers digest dos anos 40 e 50 e de bibelots de ocasião, comprados ou nas visitas a Lisboa ou nos Armazéns do Povo. Num canto, entre a segunda janela e o cesto de revistas brasileiras, ficava a pata de elefante oca que eu, às escondidas, me divertia a calçar. Penduradas nas paredes, as cabeças de gazela empalhadas que o tio Carlos tinha mandado de Angola, muito tristes e carunchosas, com os seus olhos de contas de vidrinho e que ainda assim, velavam o meu sono nas horas quentes da sesta… Também não me esqueço dos sofás, de napa vermelha, muito ao estilo anos 50 e da ventoinha do tecto que era ligada quando havia visitas importantes. Vês avó? Se não me lembrar desses detalhes, então não serei eu…

24.5.06

Meu Mar


São Vicente - Amanhecer na Ponta do Farol da Baía de São Pedro - Abril de 2006

As ondas do meu mar são douradas e a espuma é doce como o mel.
No meu mar há planaltos e vales que são montados de sombra e de luz.
Nele existem aromas mornos e risos húmidos que me embalam
Enquanto as suas marés, sem ciclos e luas, invadem as minhas praias.

22.5.06

Mininus di Furna


Nesse dia também me apeteceu jogar ao ring.
Ilha Brava, em Janeiro de 2006.

17.5.06

"Mal d' Amor"

Letra da morna "Mal d' Amor".
Original manuscrito por Eugénio Tavares.
Essa e outras preciosidades sobre a Vida e Obra do Poeta
e a Ilha Brava no site www.eugeniotavares.org

16.5.06

"Burcã"



A ilha do Fogo vista da ilha Brava. Janeiro 2006

12.5.06

"Perdão Emília" Morna, Modinha ou Fado de Coimbra?

Um amigo, que não é das ilhas, disse-me aqui há uns meses que a Morna “Perdão Emília” mais parecia um fado de Coimbra. Eu, na minha ignorância, afiancei que não, que era uma morna nossa, antiga, mas muito nossa e que, quanto muito teria influências o fado de Coimbra, mas mais nada! Uns tempos depois descobri que tinha me enganado redondamente mas... graças à aula espectacular sobre o Ultra Romantismo que o Professor Camilo me deu o ano passado, pude levantar algumas duvidas e quem sabe, dar a volta à questão. Para saber mais, é só ler a nossa troca de emails.
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Email do meu amigo:
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(…) Não sei se já tinha comentado que gostava muito da letra da morna, "Perdão Emília". Ontem na Internet, descobri que afinal a letra é já do século XIX e não é de nenhuma morna, mas sim duma modinha (Brasil). A letra conhecida da morna está um pouco adulterada, o original parece que é assim:
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Já tudo dorme, vem a noite em meio.
a turva lua surgindo além:
tudo é silêncio; só se vê na campa
piar o mocho no cruel desdém.
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Depois, um vulto de roupagem preta,
no cemitério com vagar entrou.
Junto ao sepulcro, se curvando a medo,
com triste frase nesta voz falou:
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" - Perdão, Emília, se manchei-te a vida,
se fui impuro, fui cruel, ousado...
Perdão, Emília, se manchei teus lábios.
Perdão, Emília, para um desgraçado."
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" - Monstro tirano, por que vens agora
lembrar-me as mágoas que por ti passei?
Lá nesse mundo em que vivi chorando,
desde o instante em que te vi e amei.
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Chegou a hora de tomar vingança,
mas tu, ingrato, não terias perdão...
Deus não perdoa as tuas culpas todas,
Castigo justo tu terás, então.
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Perdi as flores da capela virgem
Cedi ao crime, que perdão não tinha,
mas, tu, manchaste a minha vida honesta,
depois, zombaste da fraqueza minha...
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Ai, quantas vezes, ao meus pés, curvado,
davas-me prova de teu puro amor.
Quando eu julgava que fosses um anjo,
não via fundo nesse olhar traidor.
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Mas vês agora, que o corpo em terra
tombou, de chofre, sobre a lousa fria."
E quando a hora despontou, na lousa
um corpo inerte a dormitar se via:
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" - Perdão, Emília, se manchei-te a vida,
se fui impuro, fui cruel, ousado...
Perdão, Emília, se manchei teus lábios.
Perdão, Emília, para um desgraçado (fim.)
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Que achas? (fim do email do meu amigo)
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Claro que fui logo pesquisar e encontrei muita informação sobre a letra da musica em diversos sites, do qual destaco esta pequena biografia que está em: http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/paraguassu.asp

Paraguassu 25/5/1894 - 5/1/1976
Biografia:
Filho de imigrantes italianos, nasceu e foi criado no bairro do Brás, em São Paulo. Aprendeu a tocar violão com um vizinho e logo se tornou um seresteiro famoso na região. Aos 14 anos se apresentava em um café e foi convidado para participar de um espetáculo no circo Spinelli. Na década de 20 fez gravações para a Casa Edison e ingressou em 1924 na Rádio Educadora Paulista, passando depois ao elenco da Columbia, onde trabalhou com o maestro Gaó. No período na Columbia gravou cerca de 150 músicas. Fez sucesso cantando modinhas, serestas e toadas sertanejas, como "Luar do Sertão" (Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco), "Triste Caboclo", "Lamentos" (Catulo da Paixão Cearense), "Tristezas do Jeca" (Angelino de Oliveira). Participou da Série Caipira de Cornélio Pires, em que gravou, sob o pseudônimo Maracajá, "A Encruziada" (A. de Oliveira) e "Cantando o Aboio" (A. de Oliveira/ Cornélio Pires). Seu último grande sucesso foi a modinha "Perdão, Emilia" (J.H. Silva/ Juca Pedaço), de 1945."

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E descobri mais... A minha resposta ao email desse meu amigo:
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(…) Sobre a tua descoberta, quero que leias este excerto que copiei de uma transcrição de um programa brasileiro de datado de Março de 1952 que está no site http://daniellathompson.com/Texts/Pessoal/pessoal17.htm (e que é uma delicia de se ler, diga-se!)
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“(...) "Entre as velhas e mais plangentes modinhas do Brasil figura a célebre “Perdão Emília”, soturna cantiga que foi [flor?] pelo Brasil afora no tempo das serenatas. Jamais se apurou quem a escreveu. Aproveitando-se dessas circunstâncias, um cantor paulista apossou-se dela, gravando-a em discos com o seu nome. É uma desfaçatez, que foi uma nódoa na decência da profissão de autores e de cantores nessa terra. “Perdão Emília”, segundo informação de antigos ouvintes, informações a que dão curso sem apoiar ou desapoiar, foi composta por um português chamado José Henrique da Silva, que residiu longo tempo em São João da Barra. Foi escrita há 63 anos, em 1889, quando o seu autor contava 24 anos de idade. Isso, repito, é a informação de um ouvinte que nos deu por carta, e que jamais pudemos apurar. A velha modinha que vai agora para atender a o que nos pedem D. Jerusa Carvalho e sua irmã D. Mariana Carvalho."
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Tendo em conta o que esta escrito em cima, sabes que a tua teoria, de que, originalmente, seria um fado de Coimbra pode até ser verdade? E ainda vou mais longe e digo que o poema (ou inspiração) é muito mais antigo do que a data dada. Ainda que possa estar errada, acho que pela estrutura que apresenta, está inserido no Romantismo ou melhor, Ultra Romantismo, que terminou, "oficialmente", com a "Questão Coimbrã". Ora tendo o pretenso autor (em 1889) 24 anos... hmmm. Quero dizer, um jovem, letrado, culto e a escrever assim de forma "démodé"... duvido!
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Já agora... já ouviste falar de Soares de Passos? Lê a mini biografia que se segue e depois lê a balada "O Noivado do Sepulcro"
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Soares de Passos (1826-1860)
Soares de Passos nasceu no Porto e foi estudar em Coimbra onde fundou o jornal "O Novo Trovador". Nele colaboraram poetas da segunda geração romântica. Os seus poemas foram publicados no ano de 1856 em uma colectânea intitulada "Poesias". Soares de Passos faleceu prematuramente, sendo, no entanto, um dos mais significativos poetas ultra-românticos portugueses. A sua composição mais conhecida é "O Noivado do Sepulcro", que foi muito ironizado pelos escritores realistas.
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O Noivado do Sepulcro - Balada
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Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranqüila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
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Que paz tranqüila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu.
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Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na mormórea cruz.
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Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
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Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre os ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:
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"Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei de amar,
Por que atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar?
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Amor! engano que na campa finda,
Que a morte despe da ilusão falaz:
Quem dentre os vivos se lembrara ainda
Do pobre morto que na terra jaz?
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Abandonado neste chão repousa
Há já três dias, e não vens aqui...
Ai, quão pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por ti!
.
Ai qão pesada me tem sido!"e em meio
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.
.
"Talvez que rindo dos prostestos nossos,
Gozes com outro d'infernal prazer;
E o olvido cobrirá meus ossos
Na fria terra sem vingança ter!"
.
— "Ó nunca, nunca!" de saudade infinita,
Responde um eco suspirando além...
— "Ó nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.
.
Cobrem-lhe as formas divinais, airosas.
Longas roupagens de nevado cor;
Singela c'roa de virgíneas rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.
.
"Não, não perdeste meu amor jurado:
Vês este peito? reina a morte aqui...
É já sem forças, ai de mim, gelado,
Mas ainda pulsa com amor por ti.
.
Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
Da sepultura, sucumbindo à dor:
Deixei a vida... que importava o mundo,
O mundo em trevas sem a luz do amor?
.
Saudosa ao longe vês no céu a lua?"
— "Ó vejo sim... recordação fatal"
— Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final.
.
Ó vem! se nunca te cingi ao peito,
Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
Quero o repouso do teu frio leito,
Quero-te unido para sempre a mim!"
.
E ao som dos pios co cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.
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Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.
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Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletdos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só. (fim)
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Agora compara com a letra da modinha "Perdão Emília" tal qual foi cantada por Paraguaçu em 1945. Claro que o resto podemos deduzir... a modinha foi trazida do Brasil para Cabo Verde nos finais dos anos quarenta, e entrou no reportório das musicas tocadas... por fim, para os mais novos, tornou-se uma morna, tendo entretanto a letra sido deturpada. (fim do meu email)
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Nota: (hoje) A última versão da "morna" "Perdão Emília", gravada em Cabo Verde em ____ por ____ é cantada assim:
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Posso também acrescentar que, segundo este site, "Perdão Emília" foi a primeira modinha gravada no Brasil pela Casa Edison em 1902 e em 1906 ocupou o 13º lugar do "TOP 40 SONGS OF 1906 records and sheet music sales" no Brasil.
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E se o percurso do “Perdão Emília”, foi feito de uma outra forma? Há ainda muito por descobrir no triângulo Atlântico formado por Cabo Verde, Brasil e Portugal. Mas... O facto de não saber, com certeza, se é um fado, uma morna ou uma modinha apenas faz o “Perdão Emília” ainda mais delicioso de se ouvir. Quem puder dar uma ajuda…

11.5.06

"Os Almeida de Praia Branca" Ficção e historia

-Porque casamento é honra! – respondeu Prudênce à filha, a menina moça Biazé, durante o ritual diário em que lhe penteava os cabelos num entrançado elaborado, arrematado em cruzamento, no alto da nuca.
- Mas mamã, tanto homem branco em São Nicolau, tanto homem bonito, nariz filado, aqui mesmo na Praia Branca, logo arranjaste com um jalofe? – quixumentou-se Biazé.
- Menina deixe de estoria, seu pai é homem bom e já lhe disse, o casamento é a honra de uma mulher.
- Mas o papá bem que podia ser mais clarinho. Olhe eu por exemplo, cabelo fino sim, muito, como o seu, mas espie, espie só a minha boca. E Nitcha, tem os seus olhos verdes mas mamã cabelo espichadinho como o dela, só o do papá... e não quero nem “mentar” o nariz. – concluiu insolente sob o olhar de amuo da codezinha.
- Biazé! Muita soberba é o vocês tem nesse corpo, vosso pai é um homem sério, sabe honrar a mulher e nunca deixou faltar comida na boca de vocês. E chega de conversa, abuso é que eu vos dou, suas brientas!
Este dialogo foi-me contado, quase tal e qual, pela minha avó Ida, matriarca da família, que no ano dois mil e quatro de Cristo Nossôr, com setenta e cinco anos, comandava quatro gerações entrelaçadas de Almeidas, Limas e Amantes da Rosa, e que só de filhos, netos e bisnetos, sem contar com os que se foram ficando nos sobressaltos do tempo, ascendia a uma trintena. Mána Ida, minha avó, transmitiu-me o que lhe disse a mãe, Nitchinha, minha bisavó, codé de Chencha, minha trisavó, que morreu – altiva, mulher honrada – ignorando sempre o nominha pelo qual era conhecida pelas gentes de Praia Branca.
Essa minha trisavó, Prudência de registo, gostava de ser chamada de Mamã Prudence, era neta de um dito filho de aristocrata Marselhês que aportou em Preguiça no ano de mil oitocentos e cinquenta.Estará sempre envolta em mistério a verdadeira razão que terá levado Fernand Trange, homem feito e mundano, a fixar-se em São Nicolau de Cabo Verde, como representante de uma empresa de navegação quase fantasma e que em trinta anos aportou os seus navios por umas escassas vezes em Preguiça, mesmo porque a baía de São Vicente, à época, era o porto de escala obrigatório da rota do Atlântico. Dizia-se que de vez em quando Fernand deixava escapar palavras como “rebelião familiar” e “desterro” mas dada a maneira como se comportou nos últimos anos de vida, tudo leva a crer que a única certeza sobre a sua origem era o de ser francês, excêntrico e rico.
Uns anos depois de se ter estabelecido, após corrido todo o tipo mulherio da povoação e zonas próximas, contraiu casamento por procuração com Antónia d' Almada, filha da mais fina-flor de Ribeira Brava, que fez deslocar em cortejo penoso de três carroças, uma semana e sete mulas, desde a vila, incrustada entre montes, até ao litoral. Discretamente, continuou a frequentar outras mulheres, que importava temporariamente do Mindelo, até ao dia em que percebeu que as partes se lhe mirravam, parecendo querer ser absorvidas pelo corpo imenso que chegaram a coroar, com alguma solenidade, diga-se. Para infelicidade da mulher, Antónia d' Almada Trange, e com o argumento enigmático de que quem nasce de cara para o mar, assim deve permanecer, para que os olhos não morram de sede nem os ossos se desmembrem de desespero, Fernand viveu voltado para o porto até mil, oitocentos e oitenta, quando a morte, compadecida, se deu por satisfeita de um banquete de cinco anos, em que lhe carcomeu lentamente todos os apêndices do corpo. Nos seus últimos dois anos, já cego, alucinava, bradando por uma tal Mercedes, ora lhe pedindo perdão, ora lhe gritando que morria da praga rogada. Para a posteridade deixou uma prole, criada cheia de pergaminhos por Mamã Antónia ou Mã Tanha, como os filhos teimavam em chama-la, que se foi endividando num fausto de fantasia e nobreza perdida, sob o comando do primogénito Dedé – Edmond Antão d'Almada Trange – homem dado ao vício do jogo que fez enriquecer muito oficial de navio na Baía do Mindelo de São Vicente, ilha onde se descolava periodicamente. Em princípios de mil oitocentos e noventa e cinco, Edmund, completamente falido e pai de três meninas graciosas, planeava com o apelido nobre repor, através de bons casamento, algum do esplendor sob o qual tinha nascido. Quando a sua terceira filha se tornou mulher providenciou a venda das ultimas jóias de Mã Tanha, escapadas da fúria das jogatinas, e arranjou tudo para que as meninas fizessem a jornada até a vila da Ribeira Brava e ficassem instaladas em casa do tio Luís, irmão de Tanha, até serem encaminhadas para bons casamentos.
- Veja a miséria em que vivemos! Agradeço a Deus por seu pai, filho de conde, ter morrido de praga rogada, para não ter de testemunhar a mofineza que somos hoje por sua causa!
- A desgraça começou nele, que roubou a família de França, desonrou uma Mercedes qualquer e ainda morreu de doença de mulher da vida, seu vício. – respondeu Dedé, encerrando para sempre o assunto.
Prudência, filha de Edmond e minha trisavó, apesar do nome, veio a demonstrar, um certo inconformismo contra o futuro que lhe reservara o pai ou… talvez a segunda filha estivesse predestinada a seguir um caminho diferente, para que eu esteja aqui hoje, colando todos os relatos desta saga familiar afim de melhor entender de onde viemos.
Prudence a mais bela das meninas “francesas” de Preguiça. Prudência a desgraçada da Vila de Ribeira Brava. Chencha a mulher honrada de Praia Branca. Três vidas de uma só mulher.
O que se passou na Vila nunca ficou muito claro. Sabe-se somente que Prudência, desgraçada e grávida de amor, corria o ano de mil oitocentos e noventa e seis, foi trancafiada a sete chaves e no segredo de quatro paredes pariu um filho, um bastardo. A criança, desapareceu tão secretamente como o vestígio do homem a quem ela se deu. Depois de desbarrigar, oficialmente morta pela família, foi desterrada para o extremo oposto da ilha onde o neto de um de escravo da costa da Guine, se apaixonou por ela. Chamava-se José Joaquim Almeida, Padjé, e fez dela mulher honrada ao desposa-la. Juntos geraram dois rapazes e cinco meninas, sendo as duas ultimas a tia Bia Zé e a minha bisavó Nitchinha. (ver fotografia no post de 05 de Maio de 2006)
Assim se forjaram os Almeida do meu lado paterno. Descendentes de um humilde empregado de loja, da povoação de Praia Branca, que se casou com Chencha, donzela aristocrata caída em desgraça. Mulher que ele amou desde que a viu cruzar a porta da Drogaria Almada, de vestido negro, sovado de servir e lenço de vergonha a envolver-lhe a cara translúcida. Mulher que jurou honrar com o casamento, quando da sua história soube e que até ao fim da vida, mesmo quando a viu com os olhos crus da convivência dos anos, mesmo assim, nunca alcançou que ela, mulher casada e honrada, seria sempre Prudence, filha de Preguiça, acidentada pela vida, mas aristocrata de alma.

Cronologia de uma Crónica
1850 – Com procedência do porto da Vila da Praia de Santa Maria, aporta em Preguiça de São Nicolau, Cabo Verde, o Navio “Destain” da Companhia Marselhesa Azure. Desembarca Fernand Trange, francês de 25 anos, moreno de olhos verdes, que se faz acompanhar somente de cinco baús, sendo três deles consideravelmente pesados. Do mesmo navio, despachados como carga, com destino à família Almada, da Vila de Ribeira Brava, descem quatro negros djalofos da costa da Guine-Bissau. O escravo mais novo recebe o nome cristão de Domingos Almeida, sendo o apelido o mais próximo do do apelido da família a que pertence.
1853 – Fernand Trange leva uma vida faustosa na povoação de Preguiça. Constrói um palacete de varanda corrida para o mar e vive na companhia permanente de duas, três e mais mulheres. Domingos Almeida, trabalha na agricultura e enamora-se da escrava Chiquinha, filha bastarda do patriarca dos Almada.
1854 – Fernand decide casar-se e constituir família após uma noite de bebida, desassossego e delírio. Escorraça todas as mulheres do palacete e envia o amigo Antero da Silva, munido de uma procuração de casamento para a vila com as directrizes de escolher uma menina, das melhores famílias, com boa largura de ossos, para que possa parir toda uma prole de legítimos. Domingos e Chiquinha vivem juntos. Nasce uma filha.
1855 – Nasce o primogénito de Fernand Trange e Antonia d' Almada Trange, que recebe o nome de Edmond Antão d' Almada Trange. Domingos e Chiquinha Almeida partem para a zona de Praia Branca de São Nicolau, onde vão servir um outro ramo da família Almada. Nasce um filho que recebe o nome de José Almeida.
1877 – Casa-se, à revelia da família, Edmond Antão de Almada Trange, Dedé, com Teresa do Rosário Alves. No mesmo ano ainda nasce-lhes a primeira filha. De Teresa sabe-se apenas que é de origem humilde e das zonas que circundam Preguiça. As más-línguas dizem que ambos são irmãos de pai. Nesse mesmo ano Domingos Almeida morre de febre.
1879 – Em Abril nasce Prudência Caridade d' Almada Trange. A tempestade que lhe deu as boas vindas ao mundo seria lembrada por muitos anos. Morre, nessa mesma noite, numa derrocada de pedras, Chiquinha Almeida, mulher de armas, que teimou em socorrer a filha, que paria, na noite do fim do mundo. Deixa vivos 4 filhos e 10 netos, estando um dos netos, filho do primogénito José, Joaquim José Almeida (Padjé) com 4 anos.
1880 – Numa madrugada de Fevereiro, morre Fernand Trange. Num ultimo momento de lucidez, murmura que de nada serve esconder-se no meio do nada, rodeado de mar, porque as pragas são carregadas com o vento. Leva consigo a sua verdadeira historia.
1895 – Prudence e as suas duas irmãs partem para a Vila de Ribeira Brava. Está-se no mês de Novembro. José Joaquim, na Praia Branca, sonha que uma mulher se dirige a ele e pelo caminho pisa escorpiões e lacraus. Ele estende-lhe a mão, mas ela ignora. Vê-a de vestido preto mas não lhe distingue a face.
1896 – Em Agosto, a família descobre que Prudência está grávida.
1897 – Em fins de Janeiro, Chencha é exilada em Praia Branca, servindo como criada de uns amigos da família Almada.
1898 – Casam-se Chencha e Padjé (Prudência Caridade d' Almada Trange e José Joaquim Almeida).
1905 – Nasce Bia Zé.
1907 – Nasce Nitchinha (minha bisavó).
1914 – Dialogo do Casamento (o principio da crónica).
1924 – Morre a minha trisavó Chencha. Dizem que no fim suspirou um nome... Carlos.
P.S. Quando fazia a pesquisa para esta crónica, descobri que existiu um tal primo "Carlos d' Almada", filho de João Almada e neto de Luís, irmão de Mã Tanha (Antonia d' Almada Trange) que também vivia no mesmo casarão dos Almadas quando as "meninas francesas de Preguiça" foram para lá morar. Ainda no decorrer do ano de 1896, segue para Coimbra, para estudar medicina, mas o seu rasto perde-se em 1898, quando segue para umas ferias no norte de Portugal.

"Storia de dôz cmade de Sã Ninclau"

Un veiz, diazá, tinha dôz cmáde viúva que tá vivê na cômp. Tud dia, quêl cmáde máz nôv táva bá vizitá kel ôte e êz tá fala “só” na vida d’zente d’sês zona. Ben cuntecê que ben parcê un violador lá pa kez banda ond ez tá môrá. Quez dôz cmáde fca transtornude, pamôd ez tinha med d’kel hom ben bafasse ez tambén. Unton, côme êz tá vivê pert d’cumpanher, ez cumbiná un hora, kê tud dia, quand kel cmáde máz nôv táva saì de sê caza, zá kel ôte cmáde táva na zanela ta guítal ta ben.
Durant un semana tud corrê pa medjor até c’un dia… quond quel cmád máz nôv zpanca porta de sê caza e el táva pront pa travessá sê horta, el dá de cara cum moç nôv, que nunca el tinha oiod na quez banda e el descunfía! Quel ote cmáde, que tinha bôd pa janela, juztin kel hora, el tive temp só d´ôiá sê cmád ta ser bafôd pa ez hom na mei sê horta e dezaparcê de sê vizta.
Lôg, el pô bóca na grite!

Oh vzins! Bzôt zdam, bzôt zdam! Ê nha cmád, ál pêgá nhá cmadinha… oh nhá má! Oh scorro! É quel hom, que ta pêga amdjer… ál pêga nha cmád! Oh vzins bzôt zdam! Oh scorro!

Lôg kel hora, somá un data d’ zente, tud éz tá corrê ondé caza de quel cmad maz nôv, má zá quel moç tinha smide na mund tá bá. Êz otcha quel cmadinha, cuitadinha, que sêz sainha sbid té na cabéça, detôd na tchõ de sê horta, que boca na guiza… Êz consolal, êz compol sêz sete sainha, êz arguil de quel tchon d’horta moiôd e êz leval pa caza d’quel ôte cmád, que já tava somôde na porta de brôçe aberte e cara moiôd de de tchore ta perguntá…

- Óh nha cmadinha… óh nha cmadinha! Mode quê bocê câ saí na hora cert? Se nê mi ta bem pa zanela guíta nhô Djon d’Bia… el tá bafá bocê! Mod quê bocê câ grita nha cmád?

Quel ôte cmád, inda transturnôd de sê vida raspondê…

- Primêr ‘n quiz sabê d’sêz intençõez… - e el pô ta tchora ôte vez!

(Não sei se o sotaque foi escrito da forma mais certa, mas achei a "storia" muito engraçada quando a Matilde a contou.)

10.5.06

"Picnic na Môt Inglês", São Vicente Maio 1957

Na foto pode-se ver: "Tchuna de Café Royal" (meu tio avô), Djinga que foi Guarda Redes do Mindelense, Cacone "negociante d 'Baia", Jorge Fialho que era marítimo e Adriano Gonçalves (Nana), "desempregado" na altura.

5.5.06

Empregadas dos Ingleses - Telégrafo

Fotografia tirada há cerca de oitenta anos em São Vicente. A minha bisavó Nitchinha está assinalada com uma cruz. O homem sentado ao lado do inglês chamava-se Pipi de Cacaia e era o chefe das empregadas.