Caboverdeano que se preze e goste de escrever tem de "botar" algo sobre a chuva… É sina. Vem isto a propósito de me ter apanhado a pensar no que não daria por uma boa chuva, miudinha, para limpar este tempo feio di pó di terra que nos assombra faz meses. E lembrei-me de uma crónica que escrevi sobre o tema. Saiu no Terra Nova de Agosto/Setembro de 2001. Transcrevo pela "originalidade", por ser totalmente extemporâneo, porque os problemas persistem, pela ironia q.b. e porque não me estou a ver a escrever algo do tipo quando a chuva vier, se bem que... como diz a Marisa, "inda Agost câ dà!". Chamava-se…
Manhã de Azagua
Chove lá fora… a Azagua começou. Sinto-me contente até ao momento em que uma pontada de ansiedade me atinge. Santa Barbara! Este vai ser um daqueles dias. Vou estar meio perdida a conviver com pensamentos dúbios aliados aos velhos sentimentos “chuvais” que nós, cabo-verdianos, carinhosamente cultivamos e que, as vozes da comunicação social, melhor do que ninguém, dão alma.
Sintonizo, no rádio, o programa “… a voz da alma creola – directamente da cidade do planalto…”, onde mais uma revelação da nossa constelação musical canta “camponês ca bô tchora, ca bô desespera… qui um dia tchuba ta bem”. Um sentimento de medo invade-me. Começou… Eu sei que isto é maso, mas é o lado sado que vence. Questiono-me se o locutor vai ler outro texto fresco e campestre da, habitual colaboradora, Cláudia V., mas logo a seguir venho a mim, se só ontem, a crónica da passagem da Assomada a cidade foi lida, tenho ainda alguns dias de ansiosa espera.
Prosseguindo… a voz de Bius encanta, com mais um tema musical sobre chuva, quando, mentalmente, me preparo, para à noite, na televisão, ver as batidas e rebatidas imagens dos meninos brincando nas poças de agua lamacenta, correndo barquinhos, molhando os pezinhos, prontos para mais uma desinteriazinha, enquanto nós, telespectadores, assistimos, alegremente descansados, com tanta incongruenciazinha. Desta vez sim, o Mamãe Velha (...) será bem encaixado. Tenho a certeza que a TCV vais começar o Telejornal com o poema musicado. Não, não sou adivinha, é o que vem acontecendo ano após ano. (...)
Mas temos chuva. Não importa que nas encostas, todos os anos as águas corram para o mar, engolindo mais punhados de terra arável. Que nas cidades, ruas se tornem intransitáveis, casas sejam inundadas e transeuntes se façam acrobatas. Temos chuva!
Sentimo-nos aliviados. O camponês está feliz! Uma vez mais, cumprirá o ritual da monda, mesmo que, tal como anteriormente, este ano, também não adiante muito. Ritos são ritos, ad eternun! E nós pensamos, reconfortados, que até temos um bom motivo para faltar ao emprego, mas isso dura, apenas, até ao momento em que nos lembramos que as nossas empregadas também o farão. Mas relevamos, pelo menos por alguns dias, relevamos. Estamos todos unidos no sentimento de sermos 100% cabo-verdianos e vivermos num país de amor e solidariedade.
A emissão prossegue. O programa “Voz Solidária” leiloa percentagens simbólicas de historias de miséria, para que, no aconchego dos nossos gabinetes climatizados, nas nossas casas estanques ou mesmo na rua, abrigados nos nossos carros, falando no terceiro telemóvel em dois anos, tenhamos motivos para nos condoer e comprar, publicamente, uma fracção dessa desgraça de não poder e não ter. Mas, logo de seguida, todo o sentimento é varrido, A voz eufórica do locutor, até há momentos sensibilizada, anuncia que “os agricultores estão felizes e prontos para o trabalho, com a magnífica chuva que cai…” e nós, apaziguados, damos graças a Deus. É tempo de Azagua!
Clara Vales
Mindelo, 28.08.01