29.5.06

"O Primo Constant" e outras recordações da Guiné

"O primo Constant morreu com os pés de fora da cama, de tão grande que foi. Vomitou, em soluços negros, o fígado liquefeito de alguma maleita misteriosa que ninguém da família soube pôr o nome mas que o jovem médico da tropa portuguesa chamou solenemente, ao fim de uma pequena indagação à sua vida passada, de “resquícios da acção do quinino num fígado combalido pelo consumo exacerbado de álcool”. Mas, para o avô Lindorff, o primo querido não poderia ter morrido do “diagnóstico disparatento desse doutorzinho de merda” e acabou que oficialmente e para os anais da família a razão do seu falecimento se deveu a mandioca crua que tinha ingerido horas antes de começar a bolsar uma gosma negra, qual criança acabada de mamar. Quando depois de meia hora e quatro águas gaseificadas percebeu que o refluxo apenas piorava, meteu-se na station e descondongou de Bafatá até Bissau, onde chegou ao anoitecer, com cor de sobra de baguitch bem pangado, pronto para se acabar de desfazer em suor e postas de sangue coagulado, tão perfeitinhas, que mais parecia que paria sanguessugas pela boca. Acabou-se no catre do Hospital Central, tão fino e mirrado que somente os pés desalmados fora da cama, testemunharam o que era seu a seu dono.
Em mil novecentos e setenta e oito, quando a avó Luzia me contou a “estoria” da morte pela mandioca, na cozinha da casa de Bissau, tentando evitar que eu abarbatasse bocadinhos do tubérculo assassino, com a lucidez dos meus sete anos, perguntei-lhe como podia ele, que comeu coisa branca, morrer vomitando coisa preta. Ela acabou por concluir em voz alta, reflectindo se calhar pela primeira vez no assunto, que o fígado do primo depois de viver anos alagado em bebida, ressecara como uma pedra que estala ao sol quente do meio-dia, iniciando daí uma viagem ao mundo exterior, para ver se cá fora, ainda se poderia afogar em vinho de palma. E a mandioca, perguntei de boca cheia, e a mandioca… e a mandioca… respondeu, e sem concluir a frase, enxotou-me para o quintal, onde ainda levei a boca, um último pedaço criminoso.
Mas agora, escrevendo sobre o assunto, ocorre-me que o vinho palma também é branco, enfim, loucuras da minha gente!"
Escrevi este texto em Março de 2004 e somente há tempos tive oportunidade de o dar a conhecer á minha avó Luzia que não perdoou o facto de eu não me ter esquecido da cena da cozinha... Se ela soubesse como as recordações que tenho da minha infância na Guiné me são queridas… Ainda me lembro da sensação de adormecer na carpete da nossa incrível sala de visitas, pintada a quatro cores, onde imperava a enorme estante de mogno cheia de readers digest dos anos 40 e 50 e de bibelots de ocasião, comprados ou nas visitas a Lisboa ou nos Armazéns do Povo. Num canto, entre a segunda janela e o cesto de revistas brasileiras, ficava a pata de elefante oca que eu, às escondidas, me divertia a calçar. Penduradas nas paredes, as cabeças de gazela empalhadas que o tio Carlos tinha mandado de Angola, muito tristes e carunchosas, com os seus olhos de contas de vidrinho e que ainda assim, velavam o meu sono nas horas quentes da sesta… Também não me esqueço dos sofás, de napa vermelha, muito ao estilo anos 50 e da ventoinha do tecto que era ligada quando havia visitas importantes. Vês avó? Se não me lembrar desses detalhes, então não serei eu…