-Porque casamento é honra! – respondeu Prudênce à filha, a menina moça Biazé, durante o ritual diário em que lhe penteava os cabelos num entrançado elaborado, arrematado em cruzamento, no alto da nuca.
- Mas mamã, tanto homem branco em São Nicolau, tanto homem bonito, nariz filado, aqui mesmo na Praia Branca, logo arranjaste com um jalofe? – quixumentou-se Biazé.
- Menina deixe de estoria, seu pai é homem bom e já lhe disse, o casamento é a honra de uma mulher.
- Mas o papá bem que podia ser mais clarinho. Olhe eu por exemplo, cabelo fino sim, muito, como o seu, mas espie, espie só a minha boca. E Nitcha, tem os seus olhos verdes mas mamã cabelo espichadinho como o dela, só o do papá... e não quero nem “mentar” o nariz. – concluiu insolente sob o olhar de amuo da codezinha.
- Biazé! Muita soberba é o vocês tem nesse corpo, vosso pai é um homem sério, sabe honrar a mulher e nunca deixou faltar comida na boca de vocês. E chega de conversa, abuso é que eu vos dou, suas brientas!
Este dialogo foi-me contado, quase tal e qual, pela minha avó Ida, matriarca da família, que no ano dois mil e quatro de Cristo Nossôr, com setenta e cinco anos, comandava quatro gerações entrelaçadas de Almeidas, Limas e Amantes da Rosa, e que só de filhos, netos e bisnetos, sem contar com os que se foram ficando nos sobressaltos do tempo, ascendia a uma trintena. Mána Ida, minha avó, transmitiu-me o que lhe disse a mãe, Nitchinha, minha bisavó, codé de Chencha, minha trisavó, que morreu – altiva, mulher honrada – ignorando sempre o nominha pelo qual era conhecida pelas gentes de Praia Branca.
Essa minha trisavó, Prudência de registo, gostava de ser chamada de Mamã Prudence, era neta de um dito filho de aristocrata Marselhês que aportou em Preguiça no ano de mil oitocentos e cinquenta.Estará sempre envolta em mistério a verdadeira razão que terá levado Fernand Trange, homem feito e mundano, a fixar-se em São Nicolau de Cabo Verde, como representante de uma empresa de navegação quase fantasma e que em trinta anos aportou os seus navios por umas escassas vezes em Preguiça, mesmo porque a baía de São Vicente, à época, era o porto de escala obrigatório da rota do Atlântico. Dizia-se que de vez em quando Fernand deixava escapar palavras como “rebelião familiar” e “desterro” mas dada a maneira como se comportou nos últimos anos de vida, tudo leva a crer que a única certeza sobre a sua origem era o de ser francês, excêntrico e rico.
Uns anos depois de se ter estabelecido, após corrido todo o tipo mulherio da povoação e zonas próximas, contraiu casamento por procuração com Antónia d' Almada, filha da mais fina-flor de Ribeira Brava, que fez deslocar em cortejo penoso de três carroças, uma semana e sete mulas, desde a vila, incrustada entre montes, até ao litoral. Discretamente, continuou a frequentar outras mulheres, que importava temporariamente do Mindelo, até ao dia em que percebeu que as partes se lhe mirravam, parecendo querer ser absorvidas pelo corpo imenso que chegaram a coroar, com alguma solenidade, diga-se. Para infelicidade da mulher, Antónia d' Almada Trange, e com o argumento enigmático de que quem nasce de cara para o mar, assim deve permanecer, para que os olhos não morram de sede nem os ossos se desmembrem de desespero, Fernand viveu voltado para o porto até mil, oitocentos e oitenta, quando a morte, compadecida, se deu por satisfeita de um banquete de cinco anos, em que lhe carcomeu lentamente todos os apêndices do corpo. Nos seus últimos dois anos, já cego, alucinava, bradando por uma tal Mercedes, ora lhe pedindo perdão, ora lhe gritando que morria da praga rogada. Para a posteridade deixou uma prole, criada cheia de pergaminhos por Mamã Antónia ou Mã Tanha, como os filhos teimavam em chama-la, que se foi endividando num fausto de fantasia e nobreza perdida, sob o comando do primogénito Dedé – Edmond Antão d'Almada Trange – homem dado ao vício do jogo que fez enriquecer muito oficial de navio na Baía do Mindelo de São Vicente, ilha onde se descolava periodicamente. Em princípios de mil oitocentos e noventa e cinco, Edmund, completamente falido e pai de três meninas graciosas, planeava com o apelido nobre repor, através de bons casamento, algum do esplendor sob o qual tinha nascido. Quando a sua terceira filha se tornou mulher providenciou a venda das ultimas jóias de Mã Tanha, escapadas da fúria das jogatinas, e arranjou tudo para que as meninas fizessem a jornada até a vila da Ribeira Brava e ficassem instaladas em casa do tio Luís, irmão de Tanha, até serem encaminhadas para bons casamentos.
- Veja a miséria em que vivemos! Agradeço a Deus por seu pai, filho de conde, ter morrido de praga rogada, para não ter de testemunhar a mofineza que somos hoje por sua causa!
- A desgraça começou nele, que roubou a família de França, desonrou uma Mercedes qualquer e ainda morreu de doença de mulher da vida, seu vício. – respondeu Dedé, encerrando para sempre o assunto.
Prudência, filha de Edmond e minha trisavó, apesar do nome, veio a demonstrar, um certo inconformismo contra o futuro que lhe reservara o pai ou… talvez a segunda filha estivesse predestinada a seguir um caminho diferente, para que eu esteja aqui hoje, colando todos os relatos desta saga familiar afim de melhor entender de onde viemos.
Prudence a mais bela das meninas “francesas” de Preguiça. Prudência a desgraçada da Vila de Ribeira Brava. Chencha a mulher honrada de Praia Branca. Três vidas de uma só mulher.
O que se passou na Vila nunca ficou muito claro. Sabe-se somente que Prudência, desgraçada e grávida de amor, corria o ano de mil oitocentos e noventa e seis, foi trancafiada a sete chaves e no segredo de quatro paredes pariu um filho, um bastardo. A criança, desapareceu tão secretamente como o vestígio do homem a quem ela se deu. Depois de desbarrigar, oficialmente morta pela família, foi desterrada para o extremo oposto da ilha onde o neto de um de escravo da costa da Guine, se apaixonou por ela. Chamava-se José Joaquim Almeida, Padjé, e fez dela mulher honrada ao desposa-la. Juntos geraram dois rapazes e cinco meninas, sendo as duas ultimas a tia Bia Zé e a minha bisavó Nitchinha. (ver fotografia no post de 05 de Maio de 2006)
Assim se forjaram os Almeida do meu lado paterno. Descendentes de um humilde empregado de loja, da povoação de Praia Branca, que se casou com Chencha, donzela aristocrata caída em desgraça. Mulher que ele amou desde que a viu cruzar a porta da Drogaria Almada, de vestido negro, sovado de servir e lenço de vergonha a envolver-lhe a cara translúcida. Mulher que jurou honrar com o casamento, quando da sua história soube e que até ao fim da vida, mesmo quando a viu com os olhos crus da convivência dos anos, mesmo assim, nunca alcançou que ela, mulher casada e honrada, seria sempre Prudence, filha de Preguiça, acidentada pela vida, mas aristocrata de alma.
Cronologia de uma Crónica
1850 – Com procedência do porto da Vila da Praia de Santa Maria, aporta em Preguiça de São Nicolau, Cabo Verde, o Navio “Destain” da Companhia Marselhesa Azure. Desembarca Fernand Trange, francês de 25 anos, moreno de olhos verdes, que se faz acompanhar somente de cinco baús, sendo três deles consideravelmente pesados. Do mesmo navio, despachados como carga, com destino à família Almada, da Vila de Ribeira Brava, descem quatro negros djalofos da costa da Guine-Bissau. O escravo mais novo recebe o nome cristão de Domingos Almeida, sendo o apelido o mais próximo do do apelido da família a que pertence.
1853 – Fernand Trange leva uma vida faustosa na povoação de Preguiça. Constrói um palacete de varanda corrida para o mar e vive na companhia permanente de duas, três e mais mulheres. Domingos Almeida, trabalha na agricultura e enamora-se da escrava Chiquinha, filha bastarda do patriarca dos Almada.
1854 – Fernand decide casar-se e constituir família após uma noite de bebida, desassossego e delírio. Escorraça todas as mulheres do palacete e envia o amigo Antero da Silva, munido de uma procuração de casamento para a vila com as directrizes de escolher uma menina, das melhores famílias, com boa largura de ossos, para que possa parir toda uma prole de legítimos. Domingos e Chiquinha vivem juntos. Nasce uma filha.
1855 – Nasce o primogénito de Fernand Trange e Antonia d' Almada Trange, que recebe o nome de Edmond Antão d' Almada Trange. Domingos e Chiquinha Almeida partem para a zona de Praia Branca de São Nicolau, onde vão servir um outro ramo da família Almada. Nasce um filho que recebe o nome de José Almeida.
1877 – Casa-se, à revelia da família, Edmond Antão de Almada Trange, Dedé, com Teresa do Rosário Alves. No mesmo ano ainda nasce-lhes a primeira filha. De Teresa sabe-se apenas que é de origem humilde e das zonas que circundam Preguiça. As más-línguas dizem que ambos são irmãos de pai. Nesse mesmo ano Domingos Almeida morre de febre.
1879 – Em Abril nasce Prudência Caridade d' Almada Trange. A tempestade que lhe deu as boas vindas ao mundo seria lembrada por muitos anos. Morre, nessa mesma noite, numa derrocada de pedras, Chiquinha Almeida, mulher de armas, que teimou em socorrer a filha, que paria, na noite do fim do mundo. Deixa vivos 4 filhos e 10 netos, estando um dos netos, filho do primogénito José, Joaquim José Almeida (Padjé) com 4 anos.
1880 – Numa madrugada de Fevereiro, morre Fernand Trange. Num ultimo momento de lucidez, murmura que de nada serve esconder-se no meio do nada, rodeado de mar, porque as pragas são carregadas com o vento. Leva consigo a sua verdadeira historia.
1895 – Prudence e as suas duas irmãs partem para a Vila de Ribeira Brava. Está-se no mês de Novembro. José Joaquim, na Praia Branca, sonha que uma mulher se dirige a ele e pelo caminho pisa escorpiões e lacraus. Ele estende-lhe a mão, mas ela ignora. Vê-a de vestido preto mas não lhe distingue a face.
1896 – Em Agosto, a família descobre que Prudência está grávida.
1897 – Em fins de Janeiro, Chencha é exilada em Praia Branca, servindo como criada de uns amigos da família Almada.
1898 – Casam-se Chencha e Padjé (Prudência Caridade d' Almada Trange e José Joaquim Almeida).
1905 – Nasce Bia Zé.
1907 – Nasce Nitchinha (minha bisavó).
1914 – Dialogo do Casamento (o principio da crónica).
1924 – Morre a minha trisavó Chencha. Dizem que no fim suspirou um nome... Carlos.
P.S. Quando fazia a pesquisa para esta crónica, descobri que existiu um tal primo "Carlos d' Almada", filho de João Almada e neto de Luís, irmão de Mã Tanha (Antonia d' Almada Trange) que também vivia no mesmo casarão dos Almadas quando as "meninas francesas de Preguiça" foram para lá morar. Ainda no decorrer do ano de 1896, segue para Coimbra, para estudar medicina, mas o seu rasto perde-se em 1898, quando segue para umas ferias no norte de Portugal.